A importância da leitura em voz alta

Como este hábito fortalece laços familiares e estimula a linguagem

Vetor por FreePick

Como leitores, todos nós temos hábitos de leitura diferentes. Eu, por exemplo, gosto de ler sobretudo no silêncio e no conforto dos meus lençóis. Se estiver a chover lá fora, melhor ainda — a chuva ajuda a criar um ambiente que me transporta para o mundo literário. Nunca tinha considerado ler em voz alta, até que um único autor me obrigou a fazê-lo.

Li Saramago pela primeira vez quando devia ter uns 14, talvez 15 anos. Foi por puro gosto e curiosidade. Ainda não tinha estudado o autor, mas sabia que ele tinha ganho o Prémio Nobel da Literatura em 1998. O meu ego literário obrigava-me a desvendar as páginas escritas por essa figura incontornável.

Como seria de esperar, foi um caminho sem retorno. Comecei por Memorial do Convento, chorei com aquele final e tive uma discussão acalorada com a minha professora de Literatura Portuguesa, por não conseguir aceitar tal desfecho. Escusado será dizer que, a partir daí, foi um frenesim de leitura com Ensaio sobre a Cegueira, depois o texto teatral A Noite, e mais tarde O Ano da Morte de Ricardo Reis. Esse entusiasmo fez com que, ainda hoje, Saramago seja o meu autor português de eleição.

Apesar de ser uma amante dos livros de José Saramago, deparei-me com algumas dificuldades ao iniciar a minha primeira leitura. A minha professora de Literatura Portuguesa — fonte de boa parte do meu amor pelos livros e do meu conhecimento literário — era quase uma confidente. Dava-me sugestões de leitura, desafiava as minhas conclusões e, como neste caso, ajudava-me a ultrapassar as adversidades literárias.

Lembro-me de lhe confessar que achava a escolha de pontuação do autor algo desafiante. Não estava a conseguir prosseguir com a leitura de forma fluida e coesa. Ao que ela me respondeu: “Cristiana, isso é porque tens de ler em voz alta. É uma leitura oralizante.” Fiquei confusa, mas quem era eu para a contrariar? Assim, retomei a leitura. Ler em voz alta foi o clique de que precisava para me aventurar no universo saramaguiano, e o resto é história.

Como é possível um gesto tão simples ser, ao mesmo tempo, tão transformador?

A minha irmãzinha, quando pode, para quem está interessado ou não em ouvir, partilha o quanto adora que lhe leiam histórias. Tendo acabado de entrar no primeiro ano, já identifica algumas letras e reconhece o nome de outras, mas ler sozinha ainda é um processo em construção. É aí que entro em ação — eu leio em voz alta e ela interpreta as ilustrações.

Entre páginas coloridas e vozes que mudam de tom, este hábito de leitura em voz alta cria laços emocionais, estimula o desenvolvimento linguístico e desperta o prazer pela leitura desde cedo. Vivemos numa época em que os ecrãs ocupam grande parte do nosso quotidiano. Precisamos de quebrar esse ciclo e cultivar hábitos que representem uma pausa afetiva e educativa, reforçando a ligação entre gerações.

Vetor por macrovector

Um gesto simples, um impacto profundo

De acordo com o psicólogo russo Lev Vygotsky, especialista no desenvolvimento intelectual das crianças, a linguagem é o principal instrumento do pensamento e da aprendizagem. Quando uma criança ouve histórias, internaliza estruturas linguísticas complexas e amplia o seu vocabulário. Para além disso, a leitura partilhada constitui uma importante forma de mediação, na medida em que o adulto ajuda a criança a compreender e a interpretar o mundo que a rodeia.

Cada sociedade tem a sua própria noção de convivência, do que é correto e do que é errado. Cabe a nós, pais e educadores, transmitir o nosso saber, de modo a formar as próximas gerações em versões melhores de nós. A leitura desempenha um papel fundamental neste processo, pois, como defende Vygotsky, é a forma mais natural de internalizar conhecimentos e conteúdos.

Nesta perspetiva, a neurocientista Maryanne Wolf destaca que o cérebro humano não nasceu para ler — aprende a fazê-lo através da exposição à linguagem oral e escrita. Assim, a leitura em voz alta cria as conexões neurais necessárias para que a criança desenvolva as bases cognitivas da leitura autónoma. Por outras palavras, este hábito é essencial para o bom desenvolvimento das crianças. É a base para um desempenho escolar sólido e para um crescimento cognitivo saudável, além de fortalecer a relação familiar e incentivar bons hábitos.

Ouvir histórias não é, portanto, uma atividade passiva. Pelo contrário: estimula a atenção, a memória auditiva e a imaginação, ambas competências essenciais para o sucesso escolar e para a vida.

Para além dos benefícios que já citei, ler em voz alta é um ato profundamente emocional. Em A Psicanálise dos Contos de Fadas, é explicado que as histórias funcionam como espelhos simbólicos das experiências humanas, permitindo que as crianças processem medos, dúvidas e desejos de forma segura. Quando nós lemos para os mais pequenos, estamos a emprestar a nossa voz e a criar um ambiente de confiança e segurança, onde damos asas a que eles se sintam livres para sonhar, questionar e compreender. As crianças que crescem a ouvir histórias não apenas desenvolvem melhor a linguagem, como também associam o ato de ler ao prazer e à segurança emocional. Essa associação positiva tende a manter-se na vida adulta, contribuindo para a sua formação como leitores críticos.

Este momento de partilha é também uma forma positiva de estabelecer ligação: Podemos desligar-nos das distrações e das redes sociais para poder mergulhar em conjunto numa história colorida e divertida. Assim, o simples ato de ler em voz alta torna-se um ritual, um espaço de intimidade e comunicação genuína. Ler juntos é, precisamente, criar significado e desenvolver um cantinho seguro para questionar e aprender.

Vetor por macrovector

Dar voz às histórias é dar asas à imaginação

A leitura em voz alta é também uma forma de arte. Cada inflexão da voz, cada pausa ou expressão facial exagerada transforma a narrativa numa experiência viva e envolvente.

Quando nós, adultos, interpretamos um texto, dando-lhe ritmo, emoção e intenção, despertamos nos pequeninos as mais puras emoções. Não me posso esquecer daquele arregalar de olhos seguido pela pergunta “E agora, mana, como o cavalinho volta para casa?!”.

Com estas atitudes, além de tornar este hábito divertido, também ajuda os pequenos a aprender que as palavras têm som, cor e movimento. Esta teatralidade da leitura desperta a criatividade, incentivando-os a imaginar, criar e até reproduzir as suas próprias histórias. É comum que os mais pequenos, depois de ouvirem uma história, tentem contá-la novamente, trocando palavras, inventando personagens ou adaptando finais.

Estabelecer este hábito, além de positivo, não é difícil. A Trinta por uma linha trouxe algumas dicas para te ajudar:

  • Cria um ambiente tranquilo – Escolhe um momento do dia sem distrações, como antes de dormir ou após o jantar. Prepara um cantinho especial e deixa claro que ali a criança pode questionar, interromper e interpretar a história.

  • Deixa a criança escolher o livro – Quando participa na escolha, sente-se mais envolvida e motivada. Deixa também que ela decida como o ambiente será preparado. A minha irmã, por exemplo, gosta de escolher alguns peluches para a acompanharem para a cama, o nosso local, para poder ouvir a história.

  • Relaciona a história com a vida real – Faz perguntas, permite que ela interaja contigo, “Alguma vez te sentiste como o personagem?”. Incentiva a reflexão. Este momento permite que a criança desenvolva um pensamento crítico e aprenda a falar sobre os seus sentimentos, conseguindo gerir melhor as emoções.

  • Usa expressividade – Muda o tom da voz, faz pausas, interpreta personagens. Isso ajuda a manter o interesse e a reforçar o significado das palavras. Não há nada como entrar na personagem. Podem até competir para ver quem faz a melhor interpretação!

  • Repete as histórias favoritas – A repetição, longe de ser aborrecida, consolida a aprendizagem e dá segurança emocional. Todos temos aquele filme ou livro de conforto; é o mesmo para os mais novos. Se desejas trazer algo diferente, porque não sugerir um novo final? Ou questionar o que acontece depois do “feliz para sempre”?

Vetor por macrovector

Estas são apenas algumas das dicas que aprendi com a minha irmã mais nova, mas podes sempre dar uso à imaginação e ir além. Criar jogos ou leituras interativas torna tudo mais divertido!

Ao oferecer a nossa voz às histórias, oferecemos também tempo, presença e imaginação. É nesse gesto que se formam leitores, mas também pessoas mais sensíveis, curiosas e humanas. Afinal, cada história lida em voz alta é um sussurro que fica para sempre na memória.

E tu, sabias que a leitura em voz alta era tão benéfica?

Conta-nos como foi a tua experiência!

Cristiana Nunes

Comentários!

Política de PrivacidadeI Termos e condições

© 2021 | Trinta-por-uma-linha

E-mail: geral@trintaporumalinha.com I Contacto: Rede fixa 226090272 I Rede Móvel 961827165