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Não somos ninguém sem luz e isso leva-me a uma reflexão que faço vezes sem conta, quando dou graças por ser perfeita, do ponto de vista físico.
Como deve ser horrível ver tudo negro, não nos podermos aperceber das cores, dos tamanhos, das formas, das texturas! E, por outro lado, como é triste ver tudo às escuras, olhando a vida apenas pelo prisma do que é óbvio e não se ser capaz de partir, de viajar sem sair do mesmo lugar! Que bom pensar! Que bom ter liberdade para pensar! Esta capacidade ninguém a pode aprisionar, agrilhoar, a não ser com drogas ou com outras medidas desumanas que transformem o homem em mero objeto, mera coisa vegetativa, sem vontade própria. Quem não viu «Voando sobre um ninho de cucos» com Jack Nicholson?
O mundo está às escuras, neste fim de tarde invernoso, e todos se afligem com a falta da eletricidade e buscam velas, lanternas, tudo quanto substitua de uma forma mais pobre a maravilhosa invenção que foi a eletricidade. E, viajando um pouco no tempo, até ao século passado (e em muitos casos até há bem poucos anos!), que horror viver à luz das candeias e apenas adivinhar sombras. Não admira que se deitassem cedo com as galinhas!
Voltando aos que não podem mesmo ver, os invisuais, eles vivem neste mundo negro e são felizes, porque foram obrigados a vê-lo de maneira diferente e mais intensa. Eles não se ficam pela aparência, pela primeira impressão; vão mais fundo, porque tocam, sentem, ouvem o que as coisas lhes dizem.
E é também essa uma das «coisas» que procuro ensinar aos meus alunos, o sentirem as coisas muito para lá do que a realidade aparenta; o buscar-lhes talvez a essência, a poesia, a alma. Dizia-me uma vez um catraio que a poesia é «a alma das pessoas e das coisas posta em palavras». Que beleza! As coisas, os objetos possuírem alma! Até onde podemos ir? Não há limites.
Que busco para além do concreto, do que vejo? Exercício interessante até como autorreflexão e autocrítica se se colocar a questão de outro modo: Quem sou? Para onde vou? E vou porquê? Creio que a fase existencialista por que todos passámos (refiro-me àqueles que estão na minha faixa etária!) já se acalmou e essas interrogações são agora outras que surgem de um conhecimento mais efetivo do «eu» e, feliz e infelizmente, de muitos outros «eus» com quem contactámos, com quem nos encontrámos e / ou nos entrechocámos.
Naquele dia, numa manhã primaveril mas chuvosa em que estavam particularmente irrequietos, propus aos meus alunos que ouvissem o silêncio e, se pudessem, com ele conversassem. «O quê? Se é silêncio não se pode ouvir!» disse uma voz. «Não há silêncio!» disse logo outra. «Há, há, se estivermos calados!» acrescentou mais uma voz, timidamente. «E talvez até possamos dialogar com ele, quem sabe?» «Às tantas já estás habituada a dialogar com ele. Ó meu queridinho...» Esta fora forte, porque a Zita achava que ninguém gostava dela e não lhe conheciam namorado. «Então, meninos! Não desconversem!» Continuaram por mais alguns momentos a lançar bocas... Deixei-os desabafar e manifestarem as suas opiniões. Mais tarde, já mais calmos, sugeri que, tal como na pré-primária, deitassem a cabeça nos braços, fechassem os olhos e ouvissem o silêncio. A princípio, uns risinhos abafados ainda se fizeram ouvir e houve um que se atreveu mesmo a ressonar, mas sem resposta à provocação, acabaram todos por se acalmar e o silêncio fez-se ouvir. Aparente, é certo... Deixei passar uns minutos e eu própria fechei os olhos, pois havia sido um dia particularmente esgotante e, inconscientemente, fiz o gesto que me é habitual- passar as mãos pelos cabelos e massajar por alguns momentos a nuca e o pescoço, onde todo o stresse se acumula. Que maravilha! Que bem que se estava! Por momentos, também eu esqueci que estava na sala de aula, perante uma turma que simulava dormitar, se bem que alguns estivessem com os olhos bem abertos a espiar-me e aos colegas. Endireitei-me na cadeira, respirei fundo e por fim disse: «Vamos lá saber o que o silêncio vos disse!» As caras que me olharam diziam tudo: «Pirou de vez! Ficou biruta!» «Ó setôra, eu não ouvi nada» disse o Zé, na sua voz abrutalhada. «Aliás, se não tivesse falado, tinha adormecido. Olaré, agora é que sabia bem uma soneca!» Não pude deixar de rir; todos sabiam que o Zé adormecia em todos os lugares, cantos e esquinas. Até parecia ter sido picado pela mosca tsé-tsé! «Então não ouviram nada? Não conversaram com o silêncio?» forcei de novo a barra. A Tita, muito tímida, corou muito e disse «Eu ouvi o meu coração!» «Ai... ai... ai...» Uma risota coroou a intervenção, mas prontamente acabou com a minha pergunta «Quem mais ouviu o seu coração?» Boquiabertos, não se atreveram a mais chacota. E um a um, ao verem que realmente não se tratava de nenhuma brincadeira, mas de um exercício muito sério, começaram a surgir respostas, algumas bem inesperadas: «Eu ouvi a lâmpada de néon por cima da minha carteira. Faz cá uma barulheira!» «Eu ouvi a professora da sala ao lado gritar- Will you please shut up and sit down?» «Eu ouvi a empregada a varrer o hall do pavilhão!» «Eu ouvi a serra na sala ao lado (EVT!)». «Eu ouvi a pulseira da setôra» disse o Miguel, passado um bocado. «A minha pulseira?» «Sim, primeiro foram os berloques e depois quando a pousou na mesa. Ah! E também a ouvi suspirar!» Mentalmente, revi os meus gestos e verifiquei que o Miguel, como de costume, era bom «observador», neste caso talvez devesse dizer «ouvinte». Nesse dia eu usava a minha pulseira de berloques e tinha mesmo suspirado. A certa altura, o Rafa, o mais malandreco da turma, disse em ar de desafio «Eu não só ouvi como cheirei um bufo do meu colega do lado!» Gargalhada geral e o visado vermelho que nem um tomate.
Tinham entrado na atividade, participado ativamente mas todos os pequenos nadas serviam como elementos distratores. Era impossível mantê-los concentrados mais do que uns minutos e isso obrigava-nos a nós, professores, a uma busca incessante de pequenas tarefas que, tendo uma perspetiva lúdica, a tivessem também pedagógica.
Não procurei que fizessem silêncio novamente. Para quê? Aquele pequeno exercício, ainda que com um desfecho inesperado, servira os meus propósitos. Como entusiasmar a catraiada pelo texto de expressão livre em que lhes peço que voem, que fujam do que é conhecido, das famigeradas frases declarativas que não dizem mais nada do que declaram na forma afirmativa ou na negativa? Que textos pobres surgem... E porquê? Precisamente, porque não se libertam, não partem com o seu eu, com as suas emoções e sentimentos e, fatalmente, com o ponto de exclamação.
Nesta altura não resisto a transcrever um excerto do livro «Imaginação» de Maria Alberta Menéres:
«No campo da imaginação não podemos usar o ponto final. Muito menos, o ponto final parágrafo! Talvez, de vez em quando, o ponto e vírgula, e certamente, com a maior frequência possível, dois pontos assim: porque, na verdade, tudo está por esclarecer, por dialogar. A pontuação é importante para a imaginação, que não admite entre parêntesis nem aspas. Teremos, creio eu, de nos habituar ao uso e abuso do ponto de exclamação. E, no papel em branco da nossa vida de todos os dias, aprender a desenhar, ternamente, infinitos pontos de interrogação».
E porque teimam em recusar-se a «ver» com os ouvidos, com o tato, com as papilas gustativas e o olfato, com as emoções e os sentimentos, os trabalhos não passam de frases «déjà vu», e que se repetem ano após ano com pequenas variantes, em alunos diferentes, em turmas diferentes, mas que são cada vez mais iguais.
E é um desafio cada vez maior entusiasmar estes alunos pela leitura e pela escrita criativa que, queiramos ou não, estão interligadas. Fica-me a satisfação bem pequenina de os ter tentado levar comigo a mergulhar nas nuvens fofas, a navegar nas ondas alterosas, a partir para outras galáxias, a voar pelo reino da Fantasia, da Imaginação e da Criatividade... e de ter conseguido que alguns me acompanhassem...
Teresa Portal Oliveira
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