
Vetor por FreePick
Meu caro leitor, faltam poucas horas para a meia-noite. As passas estão na mesa, o champanhe (ou o sumo para os mais novos) está no frigorífico e, algures na tua cabeça ou num bloco de notas, está a famosa "Lista":
Ir ao ginásio;
Ler mais;
Comer menos açúcar.
Para aqueles que não sabem que lista é esta, devo dizer que vos invejo. Todos os anos, eu e muitos outros repetimos este ritual: “No próximo ano serei melhor!” Desenvolvemos metas, uma “lista” com tudo aquilo que queremos conquistar, das tarefas que asseguramos que daremos conta e de como “iremos além” ( sendo religiosamente fã de António Variações e praticante da sua filosofia nessa derradeira música).
Ano após ano, repetimos este ritual. E, ano após ano, sentimos aquela pontada de desilusão algures em meados de fevereiro, quando a lista foi esquecida e a rotina venceu.
Combater o mundo e as suas imprevisibilidades é um interminável desafio. Mas porque será que isto acontece? Por que é que somos tão maus a cumprir as promessas que fazemos a nós mesmos na passagem do ano? Será que somos irrealistas, desistentes, preguiçosos ou, simultaneamente, tudo isto?
A resposta, curiosamente, pode estar nas estantes do quarto dos nossos filhos. Estranhas? Pois, agora entranhas!
O problema não é a intenção de mudar. O problema é o formato. Nós tentamos gerir a nossa vida como se fosse uma lista de compras, quando devíamos geri-la como se fosse um romance. O ser humano não foi programado para seguir listas, foi programado para seguir histórias. Viver a vida e, com ela, aproveitar o tempo que temos.

Vetor por FreePick
Neste último dia do ano, a proposta da Trinta-por-uma-linha para a tua família é radical: rasga a lista de resoluções. Não te atrevas a limitar o teu potencial a uma lista e eu prometo que farei o mesmo!
Em vez disso, vamos ensinar os miúdos (e relembrar os adultos) a escrever o próximo capítulo.
1. A Psicologia do "Recomeço" (O Efeito Fresh Start)
Antes de falarmos de histórias, vamos falar de ciência. Porque é que damos tanta importância ao dia 1 de janeiro? O sol vai nascer da mesma maneira que nasceu a 31 de dezembro. Astronomicamente, nada de especial acontece.
No entanto, psicologicamente, acontece tudo.
Os cientistas comportamentais chamam-lhe o "Fresh Start Effect" (Efeito do Recomeço). O nosso cérebro adora marcos temporais. Dividimos a nossa vida em episódios para que ela faça sentido. O dia de Ano Novo, os aniversários ou o início do ano letivo funcionam como fronteiras mentais.
Permitem-nos separar o nosso "Eu Antigo" (aquele que comia demasiados doces e não lia o suficiente) do nosso "Eu Novo" (o herói focado e saudável).
Para as crianças e adolescentes, que estão em constante mudança física e emocional, este efeito é ainda mais potente. Eles precisam de sentir que podem deixar para trás os erros do ano letivo passado, as discussões com os amigos ou as más notas.
O dia 31 de dezembro é o ponto final de uma frase longa. O dia 1 é a letra maiúscula da frase seguinte. E é aqui que a literatura nos ensina o que fazer.
2. O Herói não tem uma “lista", tem uma missão
Pensa no livro favorito do seu filho. Seja o Harry Potter, O Principezinho ou uma aventura do Geronimo Stilton.
O protagonista alguma vez começa a aventura com uma lista de resoluções aborrecida? O Harry Potter não diz: "Este ano, a minha resolução é praticar feitiços 3 vezes por semana e passar a tolerar o Draco Malfoy"
Não. Ele tem um chamamento. Ele tem uma identidade. Ele diz: "Eu sou um feiticeiro e tenho de derrotar o Voldemort."
A diferença é subtil, mas poderosa:
A Resolução foca-se no fazer (é uma tarefa). É chato.
A Narrativa foca-se no ser (é uma identidade). É inspirador.

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Como aplicar isto hoje à noite?
Em vez de perguntares aos teus filhos "Quais são as tuas resoluções?", pergunta: "Como a personagem principal vai ser este ano?"
Em vez de "Vou estudar mais matemática" (Resolução), transformem isso em "Este ano, vou ser o Cientista Louco da família" (Narrativa).
Em vez de "Vou ler 10 livros" (Resolução), transformem em "Vou viajar para 10 mundos diferentes" (Narrativa).
Quando enquadramos os objetivos como uma história de aventura, a criança (e o adulto) sente-se o herói da sua própria vida, e não um funcionário a cumprir ordens.
3. A Importância dos "Plot Twists" (Ensinar resiliência)
Se olharmos para o ano que passou, é provável que não tenha sido perfeito. Houve momentos maus, falhas, perdas. Talvez o teu filho tenha tido uma desilusão amorosa, chumbado num teste, ou simplesmente o mundo não anda como esperávamos.
Na mentalidade de "Lista de Resoluções", isto é um falhanço. "Não cumpri o objetivo, falhei."
Na mentalidade de "Livro", isto é apenas um Plot Twist (uma reviravolta no enredo).
Esta é, talvez, a lição mais valiosa que a literatura nos dá: nenhuma boa história é feita apenas de momentos felizes. Se o herói conseguisse tudo o que queria na página 10, o livro seria aborrecido.
Precisamos de conflito. Precisamos de obstáculos.
Na noite de passagem de ano, é vital conversar com os jovens sobre isto. Ajudem-nos a olhar para os momentos maus do ano velho não como "fracassos", mas como os capítulos difíceis que deram profundidade à personagem (a eles).
"Lembras-te quando tiveste aquela nota má? Foi aí que aprendeste a pedir ajuda. Isso é evolução de personagem."
"O ano foi difícil, mas tu chegaste ao fim. Tal como o Frodo chegou a Mordor. Estás mais forte."
Isto ensina resiliência. Ensina que um capítulo mau não significa o fim do livro. Significa apenas que temos de virar a página.
4. Atividade Prática: A Cápsula do Tempo Literária
Chega de teoria. Vamos tornar isto prático. Entre as passas e o fogo de artifício, sugerimos uma atividade para fazer em família hoje à noite.
Esqueçam as promessas vagas. Vamos criar uma Cápsula do Tempo Narrativa!
O que precisas:
Um frasco de vidro vazio (ou uma caixa de sapatos decorada).
Papel e canetas.
Envelopes.
O que fazer:
A Carta ao "Eu do Futuro": Cada membro da família escreve uma carta para si próprio, para ser lida exatamente daqui a um ano, no dia 31 de dezembro do próximo ano.
O Frasco das Previsões: Cada pessoa escreve 3 previsões (tontas ou sérias) para o novo ano e coloca no frasco. "O pai vai finalmente aprender a cozinhar", "Vou descobrir uma nova série de livros favorita".
A Lista de Leitura Partilhada: Definam um "Livro de Família" para o próximo ano. Um livro que todos vão ler (ou que vai ser lido em voz alta). É um compromisso de ligação para os próximos 12 meses.
Fechem o frasco/caixa. Só se abre na próxima passagem de ano.

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5. O Poder da Página em Branco
Há algo de aterrorizador e maravilhoso numa página em branco. Um escritor sente isso sempre que começa um novo manuscrito. Por vezes escrever para vocês é como um poço sem fundo, numa imensidão de pensamentos e ideias, já outras vezes sinto que sou um deserto de palavras, secas e perdidas. Mas tudo é possível. A história pode direcionar-se para qualquer lado!
O dia 1 de janeiro é essa página. Vive a vida como a aventura que ela é, chega de regras e monotonias autoimpostas.
Para as crianças e jovens, que muitas vezes sentem que não têm controlo sobre a própria vida (são os pais e professores que mandam), esta metáfora devolve-lhes o poder. Eles são os autores. A caneta está na mão deles.
Se o capítulo anterior foi triste, eles têm o poder de escrever um mais alegre a seguir. Se foi de aventura, podem escrever um romance ou mistério.
O nosso desejo para a tua família não é que tenham um "ano perfeito". Isso não existe, nem na vida nem nos bons livros. O nosso desejo é que tenham um ano com um enredo rico.
Um ano cheio de personagens interessantes, desafios superados, diálogos profundos à hora de jantar e, claro, muitas histórias lidas à luz do candeeiro.
As doze badaladas não são um sinal para começar a trabalhar. São um sinal para começar a sonhar.
Esta noite, quando brindarem, brindem aos autores que estão sentados à vossa mesa. Brindem às histórias que viveram e, acima de tudo, às histórias que ainda vão escrever.
O ano velho acabou. Virem a página. O capítulo seguinte começa agora.
Cristiana Nunes


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