Magusto: A Fogueira, a Lenda e o Calor que nos une

Domenico Ghirlandaio, século XV

Florença, Oratorio San Martino

Todos nós temos memórias em comum que tecem a nossa infância. E atrevo-me a dizer, com toda a convicção, que em algum momento te juntaste à volta de uma grande fogueira, com um cartucho de jornal enrolado na mão, à espera impaciente pelas castanhas quentes. Para mim, é um dos momentos mais vívidos e felizes da minha infância.

Lembro-me de pintar a lenda de São Martinho na escola, com os dedos sujos de tinta, enquanto a professora nos contava a história e de como a achei genuinamente bonita. Lembro-me das corridas pelo pátio com os amigos, dos rapazes que propositalmente sujaram os seus dedos com fuligem da fogueira e corriam atrás das meninas, que soltavam gritos agudos e alegres. Ahh… Bons tempos, cheios de uma alegria coletiva que nos aquecia tanto como as brasas daquela grande fogueira.

Acima de tudo, lembro-me daquele cheiro que define o mês de novembro em Portugal. Não é o cheiro da chuva na terra seca nem o das folhas caídas no chão. É um perfume mais quente, mais rústico e infinitamente mais reconfortante: o cheiro inconfundível de castanhas a estalar sobre as brasas. É um aroma que nos transporta para as mãos tisnadas de carvão, para o calor da fogueira no rosto e para a alegria simples de partilhar um cartucho de papel que aquece os dedos, maltratados pelo frio que já se anuncia.

Mas e tu, lembras-te por que festejamos este dia? Porque é que, quando o frio começa a chegar, nos juntamos à volta do fogo para comer castanhas? A resposta, como em quase todas as boas tradições, está numa história que atravessou séculos.

Antes de chegarmos ao soldado Martinho, é importante perceber que a sua lenda se enraizou em terras que já celebravam esta época do ano com grande fervor. Os povos celtas, por exemplo, festejavam o fim do ano agrícola e o início do inverno com rituais que envolviam o fogo, como forma de agradecimento à natureza e de purificação. A fogueira era o centro da comunidade, um lugar sagrado onde se partilhavam as colheitas e se honravam os antepassados. Esta celebração da vida, da terra e da comunidade é o palco perfeito para a história que se segue.

O Soldado, o Mendigo e o Sol de Repente

A melhor maneira de ensinar uma lição é através de uma história, e esta traz consigo uma das morais mais ricas da nossa cultura. Reza a lenda que, num dia cinzento e gelado do século IV, um soldado romano chamado Martinho cavalgava perto de Amiens, na Gália. O vento cortava e a chuva ameaçava cair a qualquer momento, num cenário típico de um novembro que já se despede do outono.

Por entre as grossas gotas de chuva que começava a cair, Martinho viu, à beira da estrada, um mendigo que tremia de frio, vestido apenas com farrapos. Outros passavam, indiferentes, mas Martinho tinha um bom coração. Vendo o sofrimento do homem, não hesitou. Com a sua espada, cortou ao meio a sua quente e valiosa capa de soldado e deu uma das metades ao mendigo.

Nesse preciso instante, as nuvens escuras desapareceram, a chuva parou e um sol radioso e quente irrompeu no céu, como se a própria natureza estivesse a agradecer aquele gesto de pura generosidade. Este fenómeno ficou para sempre conhecido como o "Verão de São Martinho": aqueles dias amenos e soalheiros que, quase por milagre, nos visitam em pleno novembro.

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Da Lenda à Fogueira: A Receita da Nossa Tradição

Esta história, que remonta a tempos anteriores à fundação da nação portuguesa, ensina-nos a partilhar, mas também deu nome e forma a uma tradição riquíssima. O Magusto é a celebração popular desse gesto, onde cada elemento tem um simbolismo profundo:

  • A Fogueira: É o nosso sol de novembro, o coração da festa. Representa o calor do gesto de Martinho, mas também as tradições mais antigas de celebração e purificação. À volta deste pequeno sol, não há frio nem solidão; partilhamos histórias, risos e o calor da nossa comunidade.

  • As Castanhas: Eram o "pão dos pobres", o fruto que garantia o sustento durante o inverno. Assar as castanhas numa fogueira comunitária e partilhá-las é a recriação do ato de dividir a capa. É a prova de que, mesmo com o mais humilde dos alimentos, podemos nutrir o corpo e a alma de quem está ao nosso lado.

  • A Água-Pé ou a Jeropiga: Acompanham a celebração, marcando o final do ciclo agrícola e a prova do vinho novo. É a festa da colheita, o brinde à abundância que a terra nos dá e que, por sua vez, partilhamos. Simboliza a alegria e a gratidão pela recompensa do trabalho de um ano inteiro.

Como Trazer a Magia do São Martinho para Casa

A beleza das tradições não está em replicá-las de forma rígida e imutável, como se fossem peças de um museu. Pelo contrário, a sua verdadeira força reside na nossa capacidade de as adaptar, de lhes dar um novo sopro de vida dentro das paredes das nossas próprias casas e nos nossos próprios contextos familiares. O espírito do Magusto não vive apenas na grande fogueira da aldeia ou na festa da escola.

Ele mora no cheiro a castanhas que se espalha pela cozinha da nossa casa, na história contada ao serão e no simples gesto de partilhar o que temos.

Celebrar o São Martinho em família é muito mais do que seguir um ritual. É uma oportunidade preciosa para pausar a correria do dia a dia e ensinar aos mais novos, através de gestos concretos e divertidos, o imenso valor da generosidade, da comunidade e da gratidão.

 Não precisas de um grande quintal nem de uma fogueira imponente para acender esta chama. Precisas apenas de intenção, de um pouco de criatividade e do desejo de criar memórias quentes que irão aquecer os corações aí em casa durante todo o inverno. Tendo isso em mente, deixo aqui algumas ideias para trazer a essência desta festa para teu lar de forma a te divertires com as crianças.

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  • Contem a Lenda: Antes de comerem a primeira castanha, sentem-se em círculo e contem a história do soldado Martinho. Usem fantoches, desenhos ou simplesmente a influência da vossa voz. O poder de uma boa história é transformador.

  • Assem Castanhas, Onde For: Não tens quintal? Não há problema! As castanhas assadas no forno ou numa frigideira velha ficam deliciosas e enchem a casa com o cheiro característico do outono.

  • Criem um "Cartucho da Partilha": Decorem sacos de papel e encham-nos com castanhas para oferecer a um vizinho, aos avós ou a um amigo. O importante é o gesto de dar, tal como Martinho fez.

  • Façam Arte de Outono: Aproveitem o "Verão de São Martinho" para um passeio. Apanhem folhas secas, ouriços de castanhas e criem uma peça de arte que celebre as cores quentes da estação.

No final de contas, o São Martinho recorda-nos uma lição intemporal e profundamente humana: um pequeno gesto de bondade tem o poder de trazer o sol a um dia cinzento. Ensina-nos que a melhor forma de nos aquecermos não vem do fogo exterior que crepita e se apaga, mas do calor que geramos por dentro, na alma, quando partilhamos a nossa capa – ou, neste caso, um simples punhado de castanhas quentes.

Que a lenda do soldado Martinho nos inspire para lá deste dia de novembro. Que nos lembre que há sempre uma "capa" que podemos dividir: seja um pouco do nosso tempo, uma palavra de conforto ou um ouvido atento. A fogueira do Magusto acabará por se extinguir, as castanhas serão comidas e as ruas voltarão ao silêncio, mas a chama da generosidade, uma vez acesa, pode continuar a iluminar os dias mais frios que se avizinham.

Que a vossa celebração seja cheia de risos, de partilha e daquele calor bom que só as tradições vividas em conjunto conseguem criar.

E tu, como vais celebrar este dia?

Um feliz e quente São Martinho para todos!

Cristiana Nunes

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