Não é (só) Fuga

Porque é que a Fantasia e a Ficção Científica São a Leitura Mais Importante da Adolescência

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Leitura é um vício. Quando descobri a arte de ler, vi-me incapaz de parar, repleta da necessidade de ler mais. Era "Só mais um capítulo!", enquanto as horas passavam a voar. O meu corpo e a minha mente pediam mais. Esta é uma breve descrição da minha adolescência.

Caro leitor, se te perguntas o que eu lia, a resposta pode ser quase inteiramente enquadrada numa única categoria literária: Fantasia. Eram, na sua generalidade, livros densos e repletos de novos mundos. E venho aqui apelar que este género devia ser mais bem visto pelos pais e educadores.

Apesar de ser tendenciosa, acredito que a insistência e a preocupação do tipo: "Não devia estar a ler algo mais... sério? Algo do mundo 'real'?", devem dar lugar a uma nova interpretação.

É uma preocupação legítima, partilhada por inúmeros pais e educadores. Num mundo que exige cada vez mais competências práticas, dedicar centenas de horas a mundos com magia, pode parecer um luxo, ou pior, uma distração.

Para essa interpretação, permitam-me que vos dê um novo enquadramento:

O que o teu filho ou aluno está a fazer não é fugir da realidade. Ele está a processá-la num ambiente seguro. A fantasia e a ficção científica não são uma fuga, são uma forja. São, possivelmente, os géneros literários mais cruciais para navegar a fase mais complexa e tumultuosa da vida: a adolescência.

Bem-vindo ao simulador mais avançado que a humanidade já inventou!

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A adolescência é, por definição, avassaladora. O cérebro está em plena remodelação. A amígdala (o centro emocional) está a funcionar a todo o vapor, enquanto o córtex pré-frontal (o centro da lógica e do controlo de impulsos) ainda está "em obras".

Isto significa que os adolescentes sentem tudo com uma intensidade sísmica. O problema? Estas emoções são gigantescas, mas abstratas. E é aqui que entram os dragões.

O género literário fantástico pega nessas emoções abstratas e dá-lhes uma forma concreta.

Um adolescente pode não saber articular a sua ansiedade social ou o medo de ser julgado. Mas compreende perfeitamente o terror de uma personagem que tem de entrar sozinha na arena dos Jogos da Fome.

Ele pode sentir-se assoberbado pela pressão dos exames e o medo de falhar. Mas consegue identificar-se com um jovem feiticeiro que tem de salvar o mundo das artes negras.

A fantasia não minimiza os problemas reais, ela dá-lhes uma escala que os torna compreensíveis. Ele pode experimentar o medo, a coragem, a perda e o sacrifício, tudo a partir da segurança do seu quarto. Ele pode "falhar" através da personagem e ver que o mundo não acaba.

Isto não é escapismo. É um ensaio. É praticar emoções complexas num "laboratório" onde as consequências não são permanentes.

Metáforas Poderosas para Problemas Reais

Os livros "realistas" são fantásticos para mostrar a vida como ela é. Mas a F&FC (Fantasia e Ficção Científica) é imbatível a mostrar a vida como ela se sente. Estes géneros usam o fantástico como uma lupa para examinar as verdades mais profundas da experiência humana.

A Síndrome do "Escolhido"

O tema do "Escolhido" (o Chosen One) é um pilar da fantasia. Harry Potter, Percy Jackson, Katniss Everdeen. São adolescentes normais que, de repente, descobrem que têm um destino, um poder único e o peso do mundo nos ombros.

Isto é a adolescência levada ao extremo.

Cada adolescente vive a sua própria "síndrome do escolhido". Eles estão a tentar descobrir: "O que é que me torna especial? Qual é o meu propósito?". O medo de ser, afinal, "normal" é tão grande quanto o medo de ser "especial".

O Espelho Distópico: "Isto é Injusto!"

Porque é que os adolescentes devoram distopias? Porque eles são os maiores peritos em injustiça do mundo.

Um adolescente vive diariamente sob regras que não criou, sente a pressão esmagadora para se conformar e está a despertar para as grandes injustiças do mundo real (alterações climáticas, desigualdade social, polarização política).

As sociedades distópicas de F&FC — sejam as fações de Divergente ou o Capitólio de The Hunger Games — são metáforas perfeitas para estes sentimentos. Estes livros dão aos jovens a linguagem e os cenários para processar conceitos como poder, autoridade, revolução, e exploram a questão mais importante de todas: "O que é que uma pessoa pode fazer contra isso?"

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Heróis Falíveis e Vilões com Razão

Talvez a transição mais importante da infância para a idade adulta seja a descoberta de que o mundo não é a preto e branco. A literatura infantil tende a ter "bons" e "maus" claramente definidos.

Mas a F&FC prospera na zona cinzenta.

Apresenta heróis que tomam decisões eticamente questionáveis, que são egoístas, que falham catastroficamente. Apresenta vilões cujas motivações são, por vezes, assustadoramente... compreensíveis.

Este tipo de narrativa é um treino de pensamento crítico de nível superior. Desafia o leitor a pensar sobre ética, consequências e o "bem maior". Ensina que ser "bom" não é um estado passivo, mas uma série de escolhas difíceis.

A Musculação da Empatia pelo "Outro"

Este é, talvez, o benefício mais duradouro. Num mundo cada vez mais dividido, a empatia é uma superpotência, e a fantasia e ficção científica são um dos seus ginásios.

Pode parecer trivial, mas o esforço mental é profundo. Para apreciar a história, o leitor tem de se colocar no lugar de alguém com uma cultura e um sistema de valores radicalmente diferentes dos seus.

Este exercício torna-o exponencialmente mais capaz de aplicar essa empatia no mundo real. A F&FC é um antídoto radical contra o tribalismo.

"Mas ele 'só' lê sobre naves e feitiços..."

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Vamos abordar a maior preocupação parental: "E se ele ficar 'preso' neste género? Ele não devia estar a ler os Clássicos?"

O Mito da Leitura "Fácil"

Primeiramente, vamos desmantelar o mito de que F&FC é "leitura fácil".

Um romance realista contemporâneo exige que o leitor acompanhe a trama e as emoções. Um romance de fantasia épica exige isso TUDO, e ainda que o leitor:

  • Memorize um mapa e geografia complexos.

  • Compreenda sistemas políticos e de linhagem.

  • Aprenda as regras de um sistema de magia

  • Decifre novas linguagens e vocabulários.

  • Mantenha o registo de centenas de anos de história e mitologia interna.

Ler um livro como Dune (Ficção Científica) ou a saga A Roda do Tempo (Fantasia) é um exercício cognitivo imensamente exigente. Requer lógica, memória, dedução e uma enorme capacidade de abstração. É tudo menos fácil.

Além disso, o vocabulário da F&FC é extraordinariamente rico. A linguagem é, muitas vezes, mais elevada e complexa do que a encontrada em muitos romances realistas contemporâneos.

Em segundo lugar, agora num aspeto mais pessoal, a minha adolescência foi processada neste porto-seguro e abriu-me portas para outros géneros. Algumas leituras são necessárias para permitir um amadurecimento como leitor. Hoje leio clássicos, e é à fantasia que tenho de agradecer por isso.

A Paixão é o Motor

No final do dia, o objetivo não é criar um adolescente que consegue ler os clássicos. O objetivo é criar um adulto que quer ler.

A paixão é o motor. Um adolescente forçado a ler Os Maias pode passar a detestar ler para o resto da vida. Um adolescente que devora por vontade própria 5.000 páginas sobre uma guerra mágica torna-se um "leitor voraz". E um leitor voraz, mais cedo ou mais tarde, irá procurar outros desafios. Ele irá ler os clássicos, não porque "tem de ser", mas por curiosidade — a mesma curiosidade que o levou a abrir o livro sobre dragões. E foi assim que comecei a gostar de Eça de Queiroz.

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Da próxima vez que vires o teu filho absorto num mundo que não existe, resiste à vontade de perguntar quando é que ele vai ler "um livro a sério".

Ele já está a ler um livro a sério.

Ele está num simulador de voo para a vida. Está a praticar coragem, a treinar a empatia, a analisar sistemas de poder e a aprender a navegar a complexidade moral. Ele está a descobrir quem é, num lugar onde tem permissão para ser qualquer pessoa.

A adolescência não é ficção. Mas os melhores manuais para ela, por vezes, são.

Se estás à procura da próxima grande aventura que desafie, inspire e prepare o teu jovem leitor para o mundo, explora a nossa coleção de Ficção Científica!

Cristiana Nunes

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