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Ser único e diferente é uma das maiores belezas da Humanidade. Cada um de nós tem o seu próprio jeito de ser e de ver o mundo. Contudo, nem sempre a diferença é bem compreendida ou aceite. Vivemos numa sociedade onde aplaudimos a diferença, mas, por vezes, essa aclamação hesita quando a diferença desafia o que consideramos "normal".
Consciente desta dualidade, a UNESCO escolheu o dia 16 de novembro para marcar o Dia Mundial da Tolerância, uma data criada para nos lembrar da importância de celebrar a diversidade e de promover o respeito.
No âmbito deste dia, a Trinta-por-uma-linha quis aprender mais sobre uma condição que nos desafia a sermos mais inclusivos: a Perturbação do Espectro do Autismo (PEA).
Mas, afinal, o que é o autismo?
Antes de mais, é crucial saber que não se trata de uma doença. É uma condição do neurodesenvolvimento, o que significa que o cérebro destas pessoas processa o mundo de uma forma diferente. A isto chama-se "espectro", pois não existem duas pessoas com autismo iguais; a condição manifesta-se de forma única em cada indivíduo, variando muito na intensidade e no tipo de apoio necessário.
Esta forma diferente de "ler" o mundo influencia principalmente a comunicação, a interação social e a forma como sentem os seus sentidos — é comum existirem interesses muito focados, uma forte necessidade de rotinas para se sentirem seguras e uma sensibilidade sensorial diferente a luzes, sons ou texturas.
Para nos ajudarem a perceber o que isto significa no dia a dia, fomos ouvir quem realmente sabe. Falámos com três Terapeutas Ocupacionais (TOs) e com uma Auxiliar de Ação Direta, que partilharam connosco as suas motivações, os desafios que enfrentam e uma visão clara sobre o que a sociedade pode fazer para ser verdadeiramente inclusiva.
Apresentamos as suas perspetivas únicas, que nos ensinam que o autismo não é uma entidade singular, mas um espectro de pessoas, cada uma com os seus próprios desafios e capacidades.
Conheçamos primeiro a Mariana, Auxiliar de Ação Direta na APPACDM (Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental), no centro Madre de Deus. O seu trabalho diário oferece uma perspetiva única sobre o apoio direto e a realidade institucional.
P: Podes contar-me um pouco sobre o que te levou a trabalhar com pessoas com autismo?
Mariana: É uma área que acho curiosa e muito diferente. Para mim, é um desafio profissional lidar com pessoas assim, que me faz aprender todos os dias mais sobre esta população, até porque, como notei logo, são todos muito diferentes uns dos outros.
P: Como adaptas as tuas intervenções às diferentes necessidades e níveis de funcionamento?
Mariana: Temos de adaptar a nossa maneira de falar e de lidar com cada um. Por exemplo, já lidei com um utente agressivo que não podia estar em ambientes com muito barulho, e ao mesmo tempo temos uma utente muito pacífica que até nos ajuda a tratar dela mesma. No apoio ao autocuidado, temos de perceber exatamente o que podemos ou não fazer, e respeitar o limite de cada um.
P: Como defines o autismo e quais são as maiores dificuldades que estas pessoas enfrentam?
Mariana: Pela minha experiência, vejo-o como uma dificuldade cognitiva, de expressão e de compreensão. As maiores dificuldades que noto no dia a dia são mesmo a comunicação com os outros e a dificuldade que têm em expressar a sua própria realidade.

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Passemos agora à Rita, que nos traz uma perspetiva clínica. É Terapeuta Ocupacional desde 2019 e trabalha sobretudo em clínicas privadas, focando-se na intervenção terapêutica direta.
P: Como defines o autismo na tua perspetiva enquanto terapeuta ocupacional?
Rita: É uma pergunta complexa. É uma perturbação do neurodesenvolvimento e um espectro. Isto significa que cada pessoa com PEA acaba por ter as suas particularidades, como qualquer outra pessoa. Eu não considero o autismo um bicho de sete cabeças, e é algo que está cada vez mais presente. Para mim, o problema nunca está nestas pessoas, mas sim numa sociedade pouco apta a adaptar-se a elas.
P: Já presenciaste situações de discriminação ou incompreensão? Como lidas com esses casos?
Rita: Sim, infelizmente. Principalmente nas escolas, quando alguns professores recusam adaptar-se [às necessidades da criança]. Nessas situações, tomo uma atitude assertiva e tento explicar e defender os direitos dos meninos que acompanho.
P: Que medidas ou mudanças poderiam melhorar a inclusão escolar e social?
Rita: Precisamos de mais recursos e de mais profissionais empáticos e com formação específica nesta área. A realidade é que existem muitos professores incapazes de compreender as necessidades reais dos alunos com PEA. Muitas vezes, [esses professores] querem que sejam os alunos a adaptar-se à turma, em vez de ser o contexto da sala de aula a adaptar-se ao aluno.

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A nossa terceira entrevistada preferiu manter o anonimato. É Terapeuta Ocupacional há seis anos e tem uma experiência vasta em múltiplos contextos, incluindo escolas, apoio em domicílios e clínicas.
P: Podes descrever algumas estratégias ou atividades que utilizas para promover a autonomia e inclusão?
R: As estratégias dependem totalmente do objetivo. Para a escrita, por exemplo, podemos usar adaptadores. Para a inclusão nas escolas, fazemos várias reuniões com os educadores para definir estratégias. Já para a concentração, uma almofada pesada pode ajudar a promover a permanência em atividades de grupo, porque fornece um estímulo tátil profundo que acalma.
P: Quais são as atitudes mais importantes que a sociedade deve adotar para ser mais tolerante e inclusiva?
R: A atitude mais importante é não sermos tão capacitistas – [isto é, não assumir que a nossa forma "normal" de ser e fazer é a única correta]. Devemos parar de os impedir de fazer as coisas que desejam. Precisamos de ter espaços públicos mais inclusivos e, fundamentalmente, dar-lhes oportunidade no dia a dia e, mais tarde, oportunidade de trabalho.
P: Como adaptas as tuas intervenções às diferentes necessidades e níveis de funcionamento?
R: Eu utilizo técnicas diferentes, como algumas de Floortime [uma abordagem terapêutica baseada na brincadeira]. Tenho várias acomodações na sala, como usar símbolos [visuais] para eles poderem comunicar e compreender melhor o que quero transmitir. Também uso acomodações sensoriais para os ajudar a ter um bom estado de alerta para a interação.

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A Cátia é a nossa última entrevistada. É Terapeuta Ocupacional há cinco anos numa clínica privada. Partilhou connosco que o que a move é o "gosto pelo desafio de trabalhar com crianças" com esta condição.
P: Que medidas ou mudanças poderiam melhorar a inclusão escolar e social?
Cátia: Precisamos de mais apoio das ELIs [Equipas Locais de Intervenção], de muita mais informação, e de mais abertura por parte das escolas aos terapeutas e às estratégias que podemos fornecer para usar em sala de aula.
P: Que papel têm os terapeutas ocupacionais na sensibilização da sociedade para o autismo?
Cátia: O nosso principal papel é simples: dar a conhecer o vasto espectro. Mostrar às pessoas que não há só um tipo de autismo, que cada caso é um caso.
P: De que forma trabalhas em equipa com outros profissionais (psicológicos, professores, familiares)?
Cátia: A comunicação tem de ser constante. Fazemos reuniões de equipa e temos telefonemas regulares com os educadores e professores para articularmos estratégias.
P: Quais são os principais objetivos da terapia ocupacional com pessoas com autismo?
Cátia: O objetivo principal é que eles consigam, dentro das suas próprias características e capacidades, ser o mais independentes possível no seu dia a dia.
Ao ouvir a experiência destas quatro profissionais, ficou claro para a equipa da Trinta-por-uma-linha que o autismo tem sido mal interpretado. A mensagem central é que não se trata de "tolerar" os outros, mas sim de "incluir como fazemos com todas as pessoas".
Para incluir, é preciso primeiro desmistificar alguns mitos comuns:
O Mito da Frieza: É comum pensar-se que crianças com PEA são distantes. A realidade é outra. Embora algumas possam ser hipersensíveis ao toque, muitas outras procuram ativamente o contacto e têm uma grande necessidade de toque e abraço para se sentirem seguras.
O Mito do Génio: Outra conceção popular é a do "génio autista". Embora cerca de 10% dos indivíduos no espectro possam ter habilidades extraordinárias (como memória ou cálculo), essa é uma condição rara conhecida como Síndrome de Savant. A ideia de que "todos são génios" é um mito; cada pessoa é apenas... uma pessoa. (Como curiosidade, alguns especialistas acreditam que Albert Einstein, embora nunca diagnosticado, exibia traços consistentes com o espectro).
O Mito da Raridade: O autismo é mais comum do que se imagina. Em Portugal, estima-se que exista pelo menos 1 caso em cada 100 nascimentos. Historicamente, era diagnosticado 4 vezes mais em rapazes do que em raparigas, mas hoje sabe-se que isto se deve a uma enorme subdiagnosticação no sexo feminino, cujas características são, muitas vezes, mais subtis ou socialmente camufladas.
Aprendemos que o autismo não é uma entidade única, mas um "vasto espectro" onde cada pessoa é uma descoberta. Aprendemos com a Rita que o verdadeiro problema raramente está nestas pessoas, mas sim "numa sociedade pouco apta a adaptar-se". E aprendemos com a Mariana que, por trás das dificuldades de comunicação, está apenas uma forma diferente de "expressar a sua realidade".
Ao ouvir a experiência destas profissionais e conhecer estes factos, a mensagem central torna-se clara. Mais do que "tolerância", o que o autismo pede é inclusão.
O caminho para uma sociedade mais justa não passa por pedir às pessoas com autismo que mudem para se encaixar no nosso mundo. Passa por nós próprios — pais, professores, colegas e amigos — sermos menos "capacitistas" e mais empáticos.
Como disse a Cátia, o objetivo final é simples: tratar os outros como queremos ser tratados. Cabe-nos a nós, enquanto sociedade, garantir que o "desafio" de ser diferente seja transformado na oportunidade de ser incluído.
Entrevista por
Cristiana Nunes


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